USURPAÇÃO OU INVASÃO DA COMPETÊNCIA?
Alguns Estados e Municípios vêm legislando sobre normas gerais de licitação,
configurando verdadeira invasão da competência privativa da União. Outrossim,
ainda que aparentemente estejam agindo sob o manto da celeridade e eficiência, as
alterações promovidas nas "normas gerais" descaracterizam o procedimento
licitatório; a alteração de fases: avaliação prévia da proposta, para depois examinar
a documentação, é procedimento restrito a bens e serviços comuns, sendo
inadmissível para os demais casos, sob pena de transformar o processo licitatório
em avaliação exclusiva de preços sem qualquer zelo ou apego à qualificação técnica
do licitante.
Preliminarmente, cabe definir alguns conceitos:
O que é competência legislativa privativa, concorrente e suplementar?
- Privativa: é a competência plena, direta e reservada a uma determinada entidade
do Poder Público.
- Concorrente: é a possibilidade de legislar sobre o mesmo assunto ou matéria por
mais de uma entidade federativa, mas obedecendo a primazia da União quanto às
normas gerais. [1]
- Suplementar: é uma subespécie da competência concorrente; é aquela que
preenche os vazios da norma geral; para alguns ela é "complementar". [2]
Nos termos do artigo 22, inciso XXVII da Constituição Federal, é de competência
privativa da União legislar sobre normas gerais de licitação, in verbis:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as
modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e
fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o
disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de
economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III; (grifamos).
O fato de a Constituição definir como competência privativa da União legislar certas
matérias, in casu, normas gerais de licitação e contratação, permitiu aos Estados
legislarem (não concorrentemente, mas) suplementarmente, conforme § 2º do
artigo 24 da Constituição:
§ 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui
a competência suplementar dos Estados.
O que me parece lógico é que a competência concorrente (aquela em que os
Estados também poderiam legislar) não se aplica ao tema de "licitações e contratos
administrativos", uma vez que a competência suplementar dos Estados e do Distrito
Federal não abrange "normas gerais"; dessa forma, como bem preceitua o art. 24,
§§ 1º e 4º, da CF, a competência legislativa limitar-se-ia ao ajuste ou adaptação
das normas federais no que tange às suas particularidades locais.
Bem assim, aquilo que for vedado (explícita ou implicitamente) pela Constituição,
não será objeto de normatização por parte dos Estados:
Art. 25. ...
§ 1º - São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam
vedadas por esta Constituição
A competência legislativa plena dos Estados somente poderia ser exercitada se não
houvesse as normas gerais de licitação definidas na Lei 8.666/93, conforme o § 3º
do mesmo artigo:
§ 3º - Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a
competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
Portanto, os Estados não podem legislar sobre normas gerais de licitação - as da Lei
8.666/93 - em face da competência privativa da União sobre essa matéria. Bem
versou JOSÉ AFONSO DA SILVA [3] ao asseverar a respeito dos Estados: "Veda-selhes
implicitamente tudo que tenha sido enumerado apenas para a União e para os
Municípios. Assim, a matéria relacionada nos arts. 20, 21 e 22 explicitamente como
de competência da União está implicitamente interditada aos Estados".
Dessa forma o poder regulamentar dos Estados, Distrito Federal e Municípios em
normas de licitação deve limitar-se à competência suplementar (ou complementar).
Naquilo que a norma federal (norma geral) já preceituou, exauriu e esgotou, não
terá lugar a competência suplementar.
Cabe observar o que ANDYARA KLOPSTOCK SPROESSER [4] estabeleceu: "Desde
logo, entendemos que, se a algum ente é dado suplementar, também lhe será
possível complementar, até porque o conceito de suplementação é mais amplo,
mais abrangente do que o conceito de complementação, de tal modo que quem
pode suprir a falta, há de poder, por mais forte razão, completar os vazios da
legislação. Aliás, os vazios são vazios porque algo neles não existe, e deve ser
suprido, suplementado".
Da mesma forma, aos Municípios é dado o direito de suplementar a norma federal,
naquilo que couber e lhe for possível:
Art. 30. Compete aos Municípios:
(...)
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
Nesse diapasão, as regras criadas pela Lei Federal nº 8.666/93 não podem ser
alteradas; podem ser, sim, complementadas, ou suplementadas, o que é muito
diferente.
Sob os falsos auspícios da complementação ou suplementação, as normas gerais de
licitação contidas na Lei Federal nº 8.666/93 e até na Lei Federal nº 10.520/02,
vêm sofrendo alterações radicais e, quero crer, abusos. Em verdade, a matéria
privativa da União - normas gerais de licitação e contratos - vem sendo objeto de
nova regulamentação de alguns Estados e Municípios, que alteram
significativamente as regras e procedimentos já criados e definidos pelas leis
federais, o que não pode ser admitido. A competência suplementar significa o poder
de formular normas que desdobrem o conteúdo de princípios ou normas gerais ou
que supram a ausência ou omissão destas [5] não quer dizer que se pode alterar a
norma já existente, mas simplesmente complementá-la na sua lacuna.
Em verdade, as Lei Estaduais e Municipais estão invadindo área de competência
privativa da União, ao modificarem substancialmente os preceitos contidos nas
normas gerais; é, indubitavelmente, uma invasão da competência legislativa
federal.
Sobre o tema, há jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal que atribui a
inconstitucionalidade da lei estadual ou municipal em matéria cuja competência
seja concorrente, ressalvadas as hipóteses que a norma busca apenas a adaptação
às particularidades locais; nunca a modificação da lei federal. O que dirá então o
STF, quando a competência para legislar sobre "normas gerais" de licitação e
contratos administrativos é privativa?
"Segundo o sistema concebido pelos §1º e 4º do artigo 24 da Constituição, em
tema de competência concorrente, à União incumbe o estabelecimento de normas
gerais, restando aos Estados a atribuição de complementar as lacunas da
normatização federal, consideradas as situações regionais específicas. Assim, salvo
em caso de ausência de lei editada pela União, não podem os Estados
disciplinar matérias revestidas de generalidade tal que importe invasão
das atribuições reservadas apenas à União (CF, artigo 24, §1º). Conforme
assevera Alexandre de Moraes, "uma vez editadas as normas gerais pela União, as
normas estaduais deverão ser particularizantes, no sentido de adaptação de
princípios, bases, diretrizes e peculiaridades regionais (competência suplementar)
(Voto do Ministro Relator Maurício Corrêa na ADI nº 2.303-9 RS, julgada em
23.11.2000)"".
Na ADI nº 2.667-4 - DF, a Ementa do Acórdão relatado pelo Ministro CELSO DE
MELLO é bastante clara: "A usurpação da competência legislativa, quando praticada
por qualquer das pessoas estatais, qualifica-se como ato de transgressão
constitucional. - A Constituição da República, nas hipóteses de competência
concorrente (CF, art. 24), estabeleceu verdadeira situação de condomínio
legislativo entre a União Federal, os Estados-membros e o Distrito Federal (RAUL
MACHADO HORTA,"Estudos de Direito Constitucional", p. 366, item n. 2, 1995, Del
Rey), daí resultando clara repartição vertical de competências normativas entre
essas pessoas estatais, cabendo, à União, estabelecer normas gerais (CF, art. 24,
§1º), e, aos Estados-membros e ao Distrito Federal, exercer competência
suplementar (CF, art. 24, §2º). -- A Carta Política, por sua vez, ao instituir um
sistema de condomínio legislativo nas matérias taxativamente indicadas no seu art.
24 - dentre as quais avulta, por sua importância, aquela concernente ao ensino
(art. 24, IX) -, deferiu ao Estado-membro e ao Distrito Federal, em "inexistindo lei
federal sobre normas gerais", a possibilidade de exercer a competência legislativa
plena, desde que "para atender a suas peculiaridades" (art. 24, §3º). - Os Estadosmembros
e o Distrito Federal não podem mediante legislação autônoma, agindo
"ultra vires", transgredir a legislação fundamental ou de princípios que a União
Federal fez editar no desempenho legítimo de sua competência constitucional e de
cujo exercício deriva o poder de fixar, validamente, diretrizes e bases gerais
pertinentes a determinada matéria (educação e ensino, na espécie) (6)". 6 Ementa
da ADIMC nº 2.667-4 DF, julgada em 19 de junho de 2002.
Entendo que tal prática configura ato de flagrante desrespeito à Constituição
Federal. Se a própria Lei Federal nº 8.666/93 traz em seu artigo 1º: "Esta Lei
estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a
obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal de dos Municípios",
impossível admitir a possibilidade de alteração de disposições e conceitos definidos
pela Lei 8.666/93.
Portanto, é importante frisar:
a) a União possui competência privativa para legislar sobre normas gerais de
licitação e contratação, em todas as modalidades (art. 22, XXVII, CF);
b) Estados e Municípios somente legislam sobre matéria passível de
complementação.
Por exemplo, o julgamento das fases de habilitação e proposta é tema recorrente
quando se trata das alterações inconstitucionais de certos regulamentos; o que se
vê, são verdadeiras "mutações genéticas da norma geral". Também é fato que as
recentes normas de licitação alteram, inclusive, o procedimento estabelecido para
as modalidades licitatórias.
A Lei 8.666/93 foi clara em estabelecer que a Comissão analisará (nas modalidades
Concorrência e Tomada de Preços) primeiro a habilitação e depois a proposta,
conforme dispõe:
"art. 43 - A licitação será processada e julgada com observância dos
seguintes procedimentos:
I - abertura dos envelopes contendo a documentação relativa à habilitação
dos concorrentes, e sua apreciação;
(...)
III - abertura dos envelopes contendo as propostas dos concorrentes
habilitados, desde que transcorrido o prazo sem interposição de recurso,
ou tenha havido desistência expressa, ou após o julgamento dos recursos
interpostos;" (grifamos).
Indiscutível, portanto, é o procedimento relativo ao julgamento da licitação. A Lei
8.666/93, nesse assunto, esgotou o tema e não permitiu outro entendimento sobre
a ordem das fases: 1º a habilitação; 2º a proposta. Qualquer alteração nessa
ordem não poderá ser vista como "complementação", mas escandalosamente como
"alteração" da norma geral e das modalidades.
Inverter as fases, abrindo-se primeiro a proposta e depois a habilitação, somente
seria admissível por meio de Lei Federal, cuja matéria pertence à competência
legislativa privativa da União. Aos Estados e Municípios, como já foi dito, é
facultado o poder regulamentar suplementar, ou seja, de regular aquilo que a Lei
Federal foi omissa ou deixou a lacuna.
Uma vez que a Constituição Brasileira não permitiu, é inadmissível que Estados e
Municípios venham a alterar as normas gerais, fazendo verdadeira intervenção
cirúrgica e criando novas regras e leis desfiguradas. Esse é o caso da alteração das
fases nas modalidades Concorrência e Tomada de Preços.
Além da invasão da competência legislativa, outro problema grave é a inversão das
fases para a contratação de objetos (bens e serviços) não comuns sob a óptica, não
jurídica, mas da eficiência e qualidade. A busca frenética e desenfreada pelo menor
preço pode em muito levar a Administração à aquisição de bens e serviços
impróprios ou com baixa qualidade a ponto de comprometer o objetivo pretendido
com a contratação.
A inversão das fases já ocorreu na modalidade Pregão - Lei Federal nº 10.520/02 -
que, com bastante propriedade, propiciou a avaliação da proposta de preços antes
da habilitação do licitante; todavia, tal inversão somente deveria ocorrer nos casos
em que o objeto licitado correspondesse a "bens e serviços comuns"; muito lógico
por sinal: se os bens são comuns - especificações usuais, padronizadas, fabricação
em massa etc. - a análise prévia do preço pode ser feita sem comprometer a
eficiência e segurança do contrato administrativo.
A revelação do "preço" da proposta, em determinadas circunstâncias, pode
contaminar o julgamento do certame, uma vez que o conceito de economicidade -
equivocadamente definido exclusivamente como "menor preço" - pode relegar ao
segundo plano a análise das especificações e, principalmente, a qualificação dos
licitantes. Não tenho dúvida que a inversão das fases nas modalidades
Concorrência e Tomada de Preços, de forma a descortinar o preço antes mesmo da
avaliação do licitante, é um retrocesso ao sistema de qualificação das contratações
públicas.
É ilegal promover-se o julgamento da proposta antes da habilitação nas
modalidades convencionais definidas na Lei 8.666/93, visto que a norma geral
definiu peremptoriamente este procedimento. Alterar essa regra geral equivaleria à
criação de nova modalidade, o que é terminantemente vedado pela Lei: "art. 22 -
...; § 8º - É vedada a criação de outras modalidades de licitação ou a
combinação das referidas neste artigo".
Por fim, cabe alertar que as alterações das regras e procedimentos em licitações e
contratos administrativos, já definidos e exauridos pelas normas gerais, só
admitem modificação através de Lei Federal em face da competência privativa da
União. Aos regulamentos Estaduais, Municipais e do Distrito Federal, caberá a
complementação daquilo que não foi definido ou delimitado pela norma geral.
Notas de Rodapé
[1]José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo, 20ª ed., Malheiros, 2002, p.
479
[2]Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de Direito Constitucional, 30ª ed., Saraiva, 2003,
p.61.
[3]José Afonso da Silva, obra cit., p.600.
[4]In Direito Parlamentar -Processo Legislativo, Imprensa Oficial/ALESP, 2000, p.
74.
[5]José Afonso da Silva, obra cit., p. 479. |